segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Abotoei o ultimo fecho daquela armadura, ela deveria proteger minhas partes moles dos golpes exteriores, deveria manter o que era vital a salvo. Ela pesava muitos quilos a mais que a massa do meu corpo frouxo, mas movia minhas energias e a deixava rente a minha pele, sentia a frieza do seu contato, ela me limitava, me podava, mas os meus hematomas e machucados diziam por si só que não poderia continuar existindo sem ela. Fiquei olhando as pegadas fundas que deixava na terra enlameada, dava passos lerdos, cambaleantes, era difícil me equilibrar com aquilo, a armadura rangia nas articulações, não me deixava ir longe, me obrigava a me manter inerte. O vento que mordia a ponta do meu nariz era fraco, mortiço, as coisas chegavam ate mim abafadas, sem graça, essa era a função daquele metal retorcido, desbotar o mundo a minha volta pra que ficasse mais fácil deixar aquela paisagem florida e perigosa pra trás. Suspirei, acariciei minha concha metálica e continuei polindo suas extremidades, e ela reluzia, espelhava a luz que vinha de fora, a luz que achegava a mim filtrada, distorcida, fria. Lembrei-me do porque precisava daquele abrigo incomodo, lembrei-me de estar lá, correndo descalça pela vastidão da grama verde, ter a relva roçando meus calcanhares, da leveza da seda suave que envolvia meu corpo, do calor dos raios solares que atingiam minha pele, e a tornavam mais morena.
Dos arrepios que noite causava, das cores rosa no dia nascendo, do frescor das coisas cheias de orvalho, dos cheiros infinitos que vinham com a brisa, das flores delicadas que minhas mãos tocavam. O vento se embrenhava em meus cachos, meus cabelos queriam voar com ele, brincavam em volta de mim, um redemoinho negro moldurando minha face. Cantava, me embrenhava nas matas que se faziam tão grande ante meus olhos, mergulhava nas aguas do rio que me envolvia borbulhante, vivo. Viva, me sentia viva, vibrava, o mundo aparecia a mim como uma ciranda viva de deleites infindáveis. Fui num dia claro que seus olhos me encontraram, olhos de um castanho intenso, frio, cheio de mistérios, olhos profundos para os quais os meus se acediam como estrelas vespertinas, arcanos que persegui na vastidão da noite, andando debruçada sobre seus rastros até esquecer meus passos, até esquecer o caminho de volta, até me perder dentro de mim. Encarei meus olhos embotados e leitosos, eles nunca brilhariam outra vez, perdeu suas cores, não há nenhum encanto para ser refletido nessa alma que carrego. Ele tinha porte guapo, andava esbanjando elegância nas penas torneadas, imponente, viril, me esquecia observando sua caminhada calma e firme, me embebecia de suas formas; seus braços se tornavam lanças, ele se movia ágil, sério, era uma caçador e meu coração um cabrito contrito. O desejo me enchia e minha boca salivava, seus olhos exibiam um convite profano, mas minhas mãos se fechavam e minha manta de inseguranças me prendiam naquele comtemplar arreigado, tímido.
O sol o tornava mais vistoso, me escondia em suas sombras hesitando entre meus receios e deslumbramentos. E num impulso de adrenalina sai das camadas de vegetação que me guardavam, e me pus em sua direção. Meu corpo inquieto, medroso e excitado me debelava, mas o cheiro forte que saia dele me embriagava, me obrigava a ir em frente, e fui. Não medi meus passos cambaleantes, toquei seu rosto ao entardecer, ele sorria, temível e encantador. O tempo descompassou, não sei contar direito, depois que ele pegou minha mão e me levou nada mais importava, não perguntei pra onde, não me interessava, o sangue que pulsava ligeiro nas veias desviavam meus pensamentos, meu corpo martelava, e eu ia. Morei na curva do seu peito quente, suas caricias me domavam, virei fera mansa, felino sem garras. Sua voz grave brincava com minha respiração desconsertada, me meneava naquele êxtase imensurável, transbordava despreocupada, me balançava na beiro do abismo sem fazer ideia de que pudesse cair. Suas palavras me prendiam como algemas, depositava minha liberdade em suas mãos, e ele me mantinha cativa e me mandava voar, eu que sempre voltava de tardinha, eu que não vivia longe do tormento assíduo que ele me oferecia. Não a prisão mais segura que a liberdade. Ele atiçava meus instintos e me fugia, e eu ia, desbravava o mundo a sua procura, meus olhos viciados lhe caçavam e não enxergava mais nada, não reparava a irregularidade do terreno em que pisava, não notava quão fundo no matagal me embrenhava, estava entorpecida; não dava alguma atenção aos arranhões que os galhos secos escreviam em minha pele, não reparava no quanto eles se multiplicavam. Tropeçava, cai tantas vezes que perdi as contas, escurecia e nada clareava o caminho. Minha busca frustrada não tinha fim, ele escapava das minhas mãos, ele existia na parte de mim que não sabia viver sem ele, que não lhe negava nada, que aceitava de bom grado as esporas que seu amor continha. O mundo me fugia dos pés, se era um abismo, eu descia , adentrava em seu interior difuso e nunca alcançava ao fim, estava perdida. Me afogava e parecia nunca submergir, as ultimas reservas de ar fugiam dos meus pulmões, obriguei meus membros exauridos a continuar se movendo, a continuar lutando enquanto eu mesma já havia desistido de mim. Alcancei o mundo seco, fiquei prostrada nas bordas, enroscada, sentindo a pressão das pedras duras em meus músculos fatigados. Não sentia mais nada, não sabia mais nada, não cabia em mim, chovia. Passei meia eternidade vendo a água fria me encharcar ate os ossos, não tinhas forças, era uma massa mole e inanimada, meus pés não me obedeciam, desprezavam meus comandos, se opunham a continuar vagando, ele tinha ido tão rápido e repentino quanto havia chegado, nem a lua nem parte alguma sabia do seu paradeiro, eu indagava inutilmente a tudo que pousava a minha volta, eu me indagava, e só escutava meus ecos, não tinha resposta alguma. Meus cortes me obrigavam a ficar sentada ali, com olhar vago, tão vago quanto o espaço destruído, como tudo dentro de mim, a chuva apagava meu a trilha manchada de sangue que trouxera ate ali, a madrugada se estendia e o dia parecia ter decidido não nascer outra vez. Me desmanchava junto com o barro saturado de umidade, minhas lágrimas expulsavam seus beijos da minha memoria, lembranças me sufocavam, me calavam, via a mesma desfilando em seus braços ante meus olhos, como uma reprodução em 3D das agruras que me apertavam naquele segundo suspenso. Me arrastei pelo caminho de volta, dando pra trás com marchas incertas, correndo de tudo sem olhar pros lados, tinha os ombros curvados pelo cansaço, tinhas as vestes em frangalhos, exibia cicatrizes no corpo e na alma.
Era uma sombra, um espectro vazio, desesperançado, olhos insones dançavam nas orbitas seca, andava e andava, desdobrava meus esforços em continuar em frente, sem saber pra onde. Em algum ponto do minha marcha errante esbarrei num monte de metal largado no descampado, oxidando; senti meus olhos se encherem de lágrimas, deixei que caíssem, meu corpo inteiro sacodia em soluços histéricos, deixei a agua correr de mim até sentir que estava oca, que não havia mais nada dentro de mim. Juntei cada parte do meu escudo inanimado, busquei um novo folego, me lavei nas aguas buliçosas, esperando que elas me lavassem de dentro pra fora.
Repus minha carapaça e me despi da coragem que me levara a me abandonar a minha própria sorte; por muito tempo temi as ameaças erradas, o perigo mais real, cativa a gente.

Um comentário:

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Trecho de "Eu, delírio."

"Sendo despertado por amantes que batem na porta às 5:50h da manhã e esperam ser atendidos com um belo sorriso, e um exalo leve do cheiro que carrego. Devo avisa-los que veneno tem gosto doce, e é um delírio em fim de tarde. Não acostume-se com o sabor, se não vai beber dessa água por muito tempo."

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Escrevo porque não posso sair gritando nas ruas, ou talvez escrevo porque ainda não tenho o que falar. Hélida Carvalho, inspirada na musica que me ouve.

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