Não sei o seu valor, mas venho essa tarde contar-lhe dos
pecados que cometi em vida pós-morte. Saí de casa mais cedo, na fachada em
frente à igreja vi que o senhor só fica ouvindo confissões até as 6h, é
verdade? Temo que não dê tempo de contar-lhe tudo que venho passando, minhas
ações me condenam, mesmo nas passadas mais leves. Ainda são 4:30h, o céu ainda
nem ficou alaranjado – como gosto. Sei que não falará nada, pois só está aqui
como ouvido dos deuses, então preste atenção. Não se perca nos detalhes, não se
preocupe com o meu tom de voz, nem com o engasgo entre choros. Sou um drama não
vivido, então é isso, padre.
A minha mãe ficou me encheu de perguntas, disse que não
tinha pecados por ser tão jovem, mas ela mal sabe os crimes que cometo. O
primeiro foi no aniversário do meu irmão. Conheci um amigo dele, o cara tinha
mais de 20 anos, foi coisa de primeiro amor. Nem sei como chamar, acho que foi
amor à primeira vista, coisa de cinema. Eu ficava no portão esperando ele
passar, só pra cumprimentá-lo. Passaram-se 3 anos e ele não caminhava mais na
minha rua, eu notava ele dando a volta no quarteirão pra não olhar nem as
minhas telas pela janela. Ou a pintura que o meu olhar esboçava, ou quem sabe
ambos. O crime na história está na parte em que paro de ir pra rua olhar ele
passar, desisti de receber um olhar vago. Outro crime está no tempo que deixei
passar, poderia quebrar os relógios ao redor e sentir só a brisa, mas deixei
ele ir embora aos poucos. Não o segurei com as palavras que me amarravam o
peito, essas cordas ainda me doem, agora mesmo estão me tirando o fôlego. Tenho
dificuldade de respirar só por pensar no
beijo que está seco na boca dele, no meu cheiro preso as camisas gola pólo, e
me ouso a falar das noites ardentes que perdemos, no conhecimento do corpo
alheio que deixamos escorrer pelo ralo. Essas noites passei pintando. Imaginando
em que esquina ele me espera, se ele mudou o corte de cabelo, se ainda tem a
voz mansa.
Ouvi o galo cantar, o relógio marcava quase 6 horas. Era
hora de ir.
Sabe, padre. Os olhos deles pareciam com os seus, carregados
de quadros emoldurados. Nunca juntam poeira, deixa as coisas ruins escorrerem
pelo vidro. Amanhã eu volto mais cedo, tenho que contar-lhe do beijo de
despedida, da viagem pra Nazaré. E do nome dele estampado na sua batina.
Hélida Carvalho
Nenhum comentário:
Postar um comentário