quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Caro Padre, barato Padre.


Não sei o seu valor, mas venho essa tarde contar-lhe dos pecados que cometi em vida pós-morte. Saí de casa mais cedo, na fachada em frente à igreja vi que o senhor só fica ouvindo confissões até as 6h, é verdade? Temo que não dê tempo de contar-lhe tudo que venho passando, minhas ações me condenam, mesmo nas passadas mais leves. Ainda são 4:30h, o céu ainda nem ficou alaranjado – como gosto. Sei que não falará nada, pois só está aqui como ouvido dos deuses, então preste atenção. Não se perca nos detalhes, não se preocupe com o meu tom de voz, nem com o engasgo entre choros. Sou um drama não vivido, então é isso, padre.

A minha mãe ficou me encheu de perguntas, disse que não tinha pecados por ser tão jovem, mas ela mal sabe os crimes que cometo. O primeiro foi no aniversário do meu irmão. Conheci um amigo dele, o cara tinha mais de 20 anos, foi coisa de primeiro amor. Nem sei como chamar, acho que foi amor à primeira vista, coisa de cinema. Eu ficava no portão esperando ele passar, só pra cumprimentá-lo. Passaram-se 3 anos e ele não caminhava mais na minha rua, eu notava ele dando a volta no quarteirão pra não olhar nem as minhas telas pela janela. Ou a pintura que o meu olhar esboçava, ou quem sabe ambos. O crime na história está na parte em que paro de ir pra rua olhar ele passar, desisti de receber um olhar vago. Outro crime está no tempo que deixei passar, poderia quebrar os relógios ao redor e sentir só a brisa, mas deixei ele ir embora aos poucos. Não o segurei com as palavras que me amarravam o peito, essas cordas ainda me doem, agora mesmo estão me tirando o fôlego. Tenho dificuldade  de respirar só por pensar no beijo que está seco na boca dele, no meu cheiro preso as camisas gola pólo, e me ouso a falar das noites ardentes que perdemos, no conhecimento do corpo alheio que deixamos escorrer pelo ralo. Essas noites passei pintando. Imaginando em que esquina ele me espera, se ele mudou o corte de cabelo, se ainda tem a voz mansa.

Ouvi o galo cantar, o relógio marcava quase 6 horas. Era hora de ir.

Sabe, padre. Os olhos deles pareciam com os seus, carregados de quadros emoldurados. Nunca juntam poeira, deixa as coisas ruins escorrerem pelo vidro. Amanhã eu volto mais cedo, tenho que contar-lhe do beijo de despedida, da viagem pra Nazaré. E do nome dele estampado na sua batina.
Hélida Carvalho

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Trecho de "Eu, delírio."

"Sendo despertado por amantes que batem na porta às 5:50h da manhã e esperam ser atendidos com um belo sorriso, e um exalo leve do cheiro que carrego. Devo avisa-los que veneno tem gosto doce, e é um delírio em fim de tarde. Não acostume-se com o sabor, se não vai beber dessa água por muito tempo."

Sobre-quem.

Minha foto
Escrevo porque não posso sair gritando nas ruas, ou talvez escrevo porque ainda não tenho o que falar. Hélida Carvalho, inspirada na musica que me ouve.

Leitores.