quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Nane é apelido IX - "Vou errando enquanto o tempo me deixar..."


Não me dê as costas.
Me dê um abraço.

Nane deu oito passos pra frente. Tropeçou, olhou pra trás e sorriu com o canto da boca.
Nunca mais a vi desde aquela noite fria no purgatório. - Fazem 13 dias.

O inferno lotou com as pragas que Nane soltou naquela noite. Os xingamentos estavam acompanhados de punhaladas nas costas enquanto ela dançava jazz no meio do salão. Ou enquanto fotografava o vento que fazia os pássaros inquietantes, as flores que perdiam suas pétalas, e as crianças que perdiam seus medos, seus pais, seus passos. O céu da boca de Nane estava amargo, um lago de fel mergulhado em sua língua que tomava o amargor do seu corpo, e a fazia cuspir verdades de dez em dez minutos. Mesmo na hora da palestra do professor de Geologia, mesmo na hora que o padre pedia aos noivos os votos de amor, mesmo na hora do parto da sua mãe quase velha, mesmo na hora do silêncio da madrugada. Mesmo entre o silêncio entre cada gole de café quente numa mesa frígida. 

Nane falou, ouviu, e desde então não conseguiu ser mais nada.
Correu 12km por trinta dias, suas pernas não se cansaram.
Os nervos do coração estavam inchados e doloridos.
Transbordavam rancor.

O fim veio como um bilhete na geladeira, como um lembrete na ponta do espelho, como o toque novo do despertador. O fim de Nane veio engarrafado, e foi encontrado no mar. As cartas estavam na mesa, as cartas estavam nas mãos suadas de quem perdia, as cartas da manga estavam esgotadas. As cartas escritas com lágrimas, dor e caneta azul. As cartas com títulos de mês em mês, as cartas de prostitutas, as cartas de crianças, as cartas com memórias. Todas numa mesa. Em um ambiente esgotado pelo calor, em um coração esgotado por amar. Um corpo esgotado de feridas abertas, um corpo esgotado de ser espancado, um corpo esgotado de respirar outros ares, respirando os mesmos ares. Ares, áreas  campos e concentrações.

Guerras intimas com sua própria alma, que não concordava com seus verbos imperfeitos. Com a franja curta que quase chegava ao queixo, com a unha grande e pequena ao mesmo tempo, com o silêncio e a incessante vontade de cantar. Com a vontade de ir, mas sempre ficando.Com vontade de voar, mas sempre andando. Com vontade de amar, mas sempre matando.

[...] Chorei saudade a semana inteira, amor. 

Não somos mais as mesmas. Morremos, e a missa de sétimo dia será daqui há 19 anos. Com nossos filhos aprendendo a falar e dizendo "Adeus." enquanto brincam pelo chão do cemitério. Com nossas mães em traje preto, e nossos irmãos se casando e fazendo as malas. E nós ficaremos. 
Prometemos ficar e voar.
Voamos, e prometemos ficar.

O nosso tempo acabou, amor.
Não sei se isso é um episódio da sua vida aos meus olhos. Ou se é um pedaço da minha vida refletindo no espelho dos teus olhos de vidro.

Perdão vem numa caixa de sapatos, coberto de jornal, que ao se abrir canta com um coral:
FICA.

Hélida Carvalho

3 comentários:

  1. Espero que esse não seja o fim de Nane.

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  2. Hummm, pra mim foi tentador acabar Nane aqui. Ou fazê-la renascer nos próximos, como uma nova mulher. A gente tem que se renovar, e com Nane não é diferente. Não se preocupa, vem mais Nane por aí. E outros personagens, não vou focar tanto nela quanto foquei nesses episódios da crônica. Um beijo, obrigada por ler.
    Hélida.

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Trecho de "Eu, delírio."

"Sendo despertado por amantes que batem na porta às 5:50h da manhã e esperam ser atendidos com um belo sorriso, e um exalo leve do cheiro que carrego. Devo avisa-los que veneno tem gosto doce, e é um delírio em fim de tarde. Não acostume-se com o sabor, se não vai beber dessa água por muito tempo."

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Escrevo porque não posso sair gritando nas ruas, ou talvez escrevo porque ainda não tenho o que falar. Hélida Carvalho, inspirada na musica que me ouve.

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