quarta-feira, 3 de abril de 2013

Espelhos que mentem

   Imundos, velhos, jovens, perdidos. Encontrados num vilarejo de pouca fé, muita esmola, muitos quebra-molas e pouco amor. Lombadas que atrasavam um passo em conjunto, atrapalhavam a sincronia das nossas mãos cheias de terra seca juntas. Deixava escorrer pelos pés o caminho de volta pra casa que não tínhamos. E o beijo que não demos secava sempre que insistíamos em correr pelo parque, pulando cada lombada entre os carros avulsos na rua sem sinalização. Só com um sinal de verde, pra sempre seguirmos adiante. Nunca parando nas quebradas, nunca nos cortando nos cacos vidros espalhando pelos arredores dos postes. Tínhamos 3 ao todo pra iluminar a cidade.

  Eramos vampiros do escuro. Sugadores de esperança, e desesperançosos quando o assunto era amar um passo dado no mesmo segundo, eramos inválidos quando o assunto era a fila do INSS, e eramos os primeiros quando tratava-se de sexo explicito em frente à uma creche de crianças cegas. Eramos desafiadores do destino, até que ele nos carregasse no colo e nos mostrasse o reflexo do espelho que nossa alma estampava.

  Eu, a delirante idosa com mãos enrugadas, com cílios esbranquiçados, com cabelo em coque e com os dentes amarelos, naquele dia - por sorte, completava 12 anos. Joguei pedras ao espelho, numa tentativa vã de fazê-lo entender que estava errado. Que eu tinha por direito os 53 anos que passei correndo pelas ruas escuras, sendo abusada por caminhoneiros, e colhendo milho na lavoura que eu imagina ter sido do meu pai. Estampava juventude naquele vulto amarelado, mas estampava “Olhos mortos” como título da minha vida. Assim chegando perto avistei o que temia. Enxerguei-me despida, com seios brotando, com boca rosada e cabelo avermelhado. Chorei por 12 segundos, que se estenderam à 16, ao olhar para meu amado.

  Cabelos negros, deslizantes aos olhos dos comuns. Olhos castanhos, e fantasiado de Capitão América. Ao chocar-se com o espelho, seus cabelos grisalhos foram o primeiro susto que se antecederia à sua morte. A bolsa que seus olhos carregavam daria para levar consigo todo desgosto por ver suas mãos mortas em frente ao espelho que esfaqueou seu coração já gasto. Perecendo assim em frente à imagem que nunca teríamos de nós mesmos.

  E por 50 anos vivemos a mais bonita e enganosa história de cadeia que poderíamos contar em qualquer geração do 1° de abril.

Hélida Carvalho

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Trecho de "Eu, delírio."

"Sendo despertado por amantes que batem na porta às 5:50h da manhã e esperam ser atendidos com um belo sorriso, e um exalo leve do cheiro que carrego. Devo avisa-los que veneno tem gosto doce, e é um delírio em fim de tarde. Não acostume-se com o sabor, se não vai beber dessa água por muito tempo."

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Escrevo porque não posso sair gritando nas ruas, ou talvez escrevo porque ainda não tenho o que falar. Hélida Carvalho, inspirada na musica que me ouve.

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