Me deu um tapa na cara, me jogou no chão, me deu socos, pontapés, me xingou de nomes que nunca tinha ouvido, me arrancou parte do cabelo, rasgou as minhas roupas em público, jogou os meus cadernos para o alto, me empurrou num canto escuro da rua, me abusou, me bateu, me mordeu com força, me deixou marcas horrendas pelo corpo, me beijou o pescoço, me deu outro tapa na cara, me beijou a boca, me pegou pela cintura, me amou num beco escuro.
Depois do nosso compasso momentâneo, me quebrou a sandália, me obrigou a andar descalça pelas ruas vazias, me fez furar os pés nos espinhos que espalhou pelo caminho de casa, me deixou com os seios amostra, me deixou de calcinha, vulgarmente desmanchada da imagem que visava antes de encontrar encostada no passeio da rua. Meu cabelo estava em todo o canto, estava inclusive na tua mão, o lápis preto escorria pelo meu rosto, não tinha lágrimas, não tinha sangue. Havia dor, havia repulsa, havia intolerância, havia vontades e saudades.
Não havia a proximidade, não havia o pudor, não tínhamos escrúpulos, não queríamos verdades inventadas, não queria sangue e dor, queríamos ser amados. Queríamos o mundo, queríamos as ruas cheias, queríamos o nascer do sol pela nossa janela. Queríamos a proximidade do teu rosto na minha mão - mesmo com violência. Queríamos o pudor de sermos incompletos ao ponto de nos matarmos em função da distância que nos assola, queríamos o corpo presente. Queríamos - se queríamos - a respiração de milhões em um só, num suspiro fundo poder se encher de ecstasy e esmagar uns aos outros. Era algo como comer o paraíso com garfo, faca e tudo. Arrancar, arrancar e arrancar sem dó dos céus. Eu poderia mesmo é me desprender do corpo e ser só alma, só o que me nutri em escapes do Sol. Mesmo rasgar a cortina do seu quarto para que você me veja na luz, assim de perto. Com olhos, lentes. Quero que me toque, que me sinta, que me inspire. Explicar para os que não sabem o que é amar, eu quero é que você me possua de todas as formas que dá. Que me pesque de mil formas no mar da solidão. E me abra. E me desvende.
Éramos doença sem cura, pandemia devastadora e os nossos olhos eram dois rubis de sangue, pedaços de coração e fim de tarde. E os adjetivos só nos davam a falta, de bandeija e cereja no topo. Mas nós nunca caberíamos em um espaço sem ele se dilatar, diluir e eternizar. Com as memórias de coisas que nunca aconteceram, lugares que não existem e perdas que não foram perdidas: me ame. Mesmo que nós não sejamos de nós, mesmo que não exista isso de nós. Mesmo que a embriaguez me faça de pura ilusão da madrugada.
Hélida Carvalho e Amanda Lua.
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