O corpo imperfeito me traz uma chance a menos de ser polida, uma chance a menos de dançar na festa, me traz uma chance a menos de ocupar um lugar onde ninguém quer sentar, de falar com quem nunca beijou um ombro nu. Uma chance a menos de beijar o paraíso, de fumar o céu enrolado num anuncio de jornal. Uma possibilidade de zeros estragando as possibilidades vagas dos meus recortes caírem nos folhetos errados, das ligações serem redirecionadas e ninguém as atender. Da câimbra me amarrar as pernas, do céu se fazer ao contrário e me afundar em silêncio. Na agonia de respirar goles de adeus entalados no peito, afogados no pulmão que murcha com a imensidão que me dilacera por dentro. Sem piedade, me afunda como se ninguém nunca tivesse me preenchido, ou que nunca tivessem segurado a minha mão pra que o vento não me carregasse pra longe, ou que um carro por acidente me desse um susto tão sorrateiro que o gosto de sangue na boca se fizesse presente por uma primavera inteira, e a ânsia de amar amargasse como fel. E daquele dia em diante, eu espero os sinais vermelhos aonde quer que eu vá. Nos restaurantes onde não sou atendida, nas filas dos bancos cheias de idosos que tem pressa. Pressa de quê? O relógio não é inimigo de quem fura filas pra assistir televisão duas horas depois. O relógio denuncia quem não espera, quem não vem, quem não nada. Se vinga de quem espera, de quem vem, de quem chora e nunca ri. E o abusa dos impotentes. Se vinga a sangue frio de quem tem esperas colecionadas nos cantos do quarto. De quem tem amores saboreados, de quem sonha paralisado, de quem reza ajoelhado. O corpo imperfeito me arredonda a alma, e a contorce entre o perfeito e céu embaixo da cama. O olho vermelho vem da neblina no quarto escuro, o enfeite no cabelo é vaidade perto do corpo nu e despreocupado com quem o toca, com quem o compõe.
Hélida Carvalho
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