quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A menina dos olhos mortos.

Foi batizada com esse nome por pura ignorância dos que a rodeavam, por puro descaso daqueles que não notavam que algo dentro dela vivia, pelo desprezo que era dado a ela em cada noite. Pobre menina, com um fardo enorme nas costas e sem ter onde se apoiar. Atrevo-me a contar sua história hoje, por pura malevolência da minha parte. Pouco me interessa se a magoarei com os palavrões que a insultarei, com os tapas que darei em sua face ao acordar.

Vivendo em uma sombra constante, nada lhe parecia importante nenhuma beleza lhe era aparente. Desde criança fingia-se de deslocada, ia para a escola sem preocupação, assim mesmo descabelada. Não queria ser notada, tinha medo de qualquer olhar atravessado. Quando a idade foi a acompanhando e já conseguia pensar nas suas próprias dores, o universo já lhe era o acumulo de incertezas que a mantiam refém. Os olhares no ônibus a fuzilavam atravessavam seus músculos com estacas em cada cara que entortavam enquanto ela ia para o fundo do ônibus, sentar naqueles últimos acentos para que passasse despercebida.

A preocupação com o cabelo foi transformando-se em uma compulsão, odiava os cachos que caiam sobre seus ombros, não suportava que seus olhos tivessem aquele azul, se sentia inferior com as pernas finas perambulando pelas ruas. Mas nada lhe era empecilho, os cachos que antes brilhavam ao sol agora estavam no chão do banheiro, tão amargurada com o mundo que só tinha ela como habitante, tão presa em um monte de nada. Olhava-se no espelho e o sentimento de pena a tomava por completo, cada pêlo do seu corpo se arrepiava com o escuro sangue correndo por suas veias. Sempre apegada a sua fé, riscou uma breve oração na parede do banheiro, sentou-se no chão molhado, deixou o chuveiro aberto para não levantar suspeitas e foi. Se foi aos poucos, um aparente sofrimento a tomou - mas não tinha como voltar atrás. Estava feito, seus cachos não existiam, seus olhos foram perdendo a cor em cada último suspiro.

Por fim, seus olhos tomaram a cor que sempre mereceram em ter. A menina dos olhos mortos, agora tinha olhos negros.
Hélida Carvalho

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Trecho de "Eu, delírio."

"Sendo despertado por amantes que batem na porta às 5:50h da manhã e esperam ser atendidos com um belo sorriso, e um exalo leve do cheiro que carrego. Devo avisa-los que veneno tem gosto doce, e é um delírio em fim de tarde. Não acostume-se com o sabor, se não vai beber dessa água por muito tempo."

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Escrevo porque não posso sair gritando nas ruas, ou talvez escrevo porque ainda não tenho o que falar. Hélida Carvalho, inspirada na musica que me ouve.

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